Acórdão 2009/2025 - Sua Proposta de Licitação Tem um Erro? Calma, Nem Tudo Está Perdido.
Para qualquer empresa que participa de licitações públicas, o cenário é familiar e a tensão, palpável. O medo de que um pequeno erro de preenchimento, uma falha formal na vasta documentação, possa levar à desclassificação imediata é uma preocupação constante. A rigidez dos processos licitatórios parece não deixar margem para deslizes.Mas e se o erro for algo que parece grave? Imagine, por exemplo, apresentar uma planilha de custos com salários para a equipe abaixo do piso estabelecido pela convenção coletiva da categoria. Intuitivamente, isso soa como um erro fatal.No entanto, uma decisão recente do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre um caso concreto oferece uma resposta surpreendente e esclarecedora. O Acórdão 2009/2025 do Plenário desafia o senso comum sobre a inflexibilidade dos certames e mostra que, em certas condições, nem tudo está perdido.
Sei que o mundo das licitações pode parecer um campo minado de regras e formalidades. Uma vírgula fora do lugar pode parecer o fim do mundo para uma empresa. Mas será que é sempre assim? Vamos desvendar juntos um conceito fundamental que traz razoabilidade a esse processo.
O Erro que Parecia Fatal: Por Que um Salário Abaixo do Piso Não Desclassifica de Imediato
O caso em questão envolveu a Concorrência Eletrônica 90.005/2025 da Prefeitura de Santana/AP, regida pela nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021). O objeto era a construção de passarelas de concreto armado no bairro Elesbão, em Matapi-Mirim, um projeto de relevância social custeado por um convênio com o Ministério da Defesa (Programa Calha Norte), com valor estimado de R$ 19.386.632,44.
A empresa que apresentou a proposta mais vantajosa, no valor de R$ 16.010.450,37, foi sumariamente desclassificada. O motivo apresentado pela prefeitura foi que a composição de custos da empresa continha salários de mão de obra abaixo do piso definido pela convenção coletiva de trabalho (CCT). Na visão do município, isso não era um simples erro, mas uma "afronta aos critérios constitucionais e trabalhistas", justificando a eliminação imediata.
Aqui reside o ponto central da análise. O TCU, em contrapartida, entendeu que essa falha não era de natureza substancial, mas sim um erro formal passível de correção. Para o Tribunal, a decisão da prefeitura foi precipitada, pois a oportunidade de sanar o vício deveria ter sido concedida. Essa interpretação se ampara em jurisprudência consolidada, como o Acórdão 719/2018-Plenário:
se o licitante apresentar composição de custo unitário contendo salário de categoria profissional inferior ao piso estabelecido em acordo, convenção ou dissídio coletivo de trabalho, isso configura, em tese, somente erro formal, o qual não enseja a desclassificação da proposta. Nesses casos, o vício pode ser saneado com a apresentação de nova composição de custo unitário desprovida de erro, em face do princípio do formalismo moderado e da supremacia do interesse público.
Ao priorizar a viabilidade da melhor oferta, desde que a correção não aumente o preço final, a decisão reforça o espírito da própria Lei 14.133/2021, que busca reduzir o formalismo excessivo e aumentar a eficiência administrativa.
Substância Sobre a Forma: O Princípio do Formalismo Moderado
A decisão do TCU se fundamenta em dois pilares do direito administrativo: o formalismo moderado e a supremacia do interesse público. Mais do que meros jargões jurídicos, esses princípios representam uma crucial mudança filosófica na gestão pública: a transição de uma cultura punitiva e avessa ao risco para uma abordagem orientada a resultados, focada na eficiência e na obtenção de valor para o erário.
O objetivo final de uma licitação — obter a proposta mais vantajosa — é mais importante do que a aderência cega a detalhes formais que podem ser corrigidos sem prejuízo ao processo. Curiosamente, o próprio edital da licitação de Santana/AP (itens 8.5.12 e 8.11) já previa essa flexibilidade, estabelecendo que erros de preenchimento na planilha não seriam motivo para desclassificação se pudessem ser ajustados sem majoração do preço.
Isso é crucial porque impede que concorrentes se aproveitem de pequenos erros formais para eliminar propostas economicamente superiores, garantindo assim maior competitividade nos certames e, consequentemente, mais economia para os cofres públicos.
Corrigindo a Rota Sem Parar o Jogo: A Racionalidade por Trás da Decisão
Ao analisar o caso, a solução final do TCU foi eminentemente pragmática. Embora tenha considerado a representação da empresa procedente — ou seja, a prefeitura errou —, o Tribunal não determinou a suspensão da licitação. Essa escolha reflete um profundo senso de racionalidade administrativa, ponderando os custos reais de uma paralisação. Interromper um projeto implica em atrasos, aumento da carga administrativa e potenciais litígios, custos que, neste caso, superavam os benefícios de uma intervenção drástica.
O relator baseou esta decisão pragmática em fatores-chave:
• A saúde do certame: A licitação foi altamente competitiva, com a participação de dezenove empresas e um desconto obtido de cerca de 17% em relação ao valor de referência. Isso indicava que o processo foi fundamentalmente bem-sucedido.
• A baixa materialidade: A diferença de preço entre a primeira colocada (R$ 16.010.450,37) e a segunda (R$ 16.090.904,90) era de R$ 80.454,53, um valor considerado baixo no contexto do contrato.
• A possibilidade de autocorreção: O certame ainda não havia chegado à fase de recursos administrativos, o que permitiria à própria administração municipal "revisitar a questão" e corrigir seu ato sem a necessidade de uma medida cautelar.
Em vez de paralisar o processo, o TCU optou por "dar ciência da irregularidade ao município". Na prática, é um alerta técnico e formal para que o erro não se repita e para que a decisão de desclassificação seja revista, evitando a interrupção desnecessária de uma obra importante.
Uma Lição de Flexibilidade e Foco no Essencial
A mensagem principal desta decisão do TCU é clara: em licitações públicas, a busca pela proposta mais vantajosa pode e deve superar falhas formais que são passíveis de correção. A aderência à forma não pode se sobrepor à substância, especialmente quando o resultado é um prejuízo ao erário com a contratação de uma proposta mais cara.
Este caso serve como um importante lembrete para gestores públicos e licitantes sobre o necessário equilíbrio entre a regra e o resultado. A burocracia existe para garantir isonomia e segurança, mas não deve se tornar um obstáculo ao seu próprio objetivo final: servir ao interesse público da maneira mais eficiente possível.
Fonte: Acórdão 2192/2025 Plenário, Representação, Relator Ministro Antonio Anastasia.
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