Acórdão 2192/2025 - 3 Mitos sobre Credenciamento que Acabam de Cair
O Paradoxo do Credenciamento
O credenciamento é amplamente conhecido no universo das contratações públicas como uma forma de inexigibilidade de licitação. A percepção comum é que, por não haver competição, o processo deveria ser uma porta aberta para todos os profissionais e empresas que atendam aos requisitos mínimos. Afinal, se a competição é inviável, por que selecionar?
Contudo, uma recente e impactante decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) desafia essa e outras ideias consolidadas, trazendo lições surpreendentes sobre eficiência, isonomia e interesse público. A deliberação mostra que, mesmo em um cenário de inexigibilidade, a busca pela excelência não só é permitida como, em alguns casos, é o caminho a ser seguido.
Neste artigo, vamos detalhar os três pontos mais contraintuitivos e revolucionários dessa decisão, que podem mudar a forma como a Administração Pública e os profissionais enxergam o credenciamento.
Lição 1: Selecionar os Melhores Não Fere a Isonomia
Limitar vagas e usar pontos para selecionar os mais qualificados é legal.
A decisão final do TCU sobre este ponto resolveu um complexo debate interno. Inicialmente, a unidade técnica da Corte entendeu que o procedimento da Receita Federal era incompatível com a Lei 14.133/2021, justamente por limitar vagas e usar pontuação, o que violaria a lógica da inexigibilidade. Contudo, o Tribunal acabou por acolher a tese divergente do Ministério Público de Contas (MPTCU), adotando uma interpretação mais principiológica e focada em resultados.
O argumento central é que, em contratações de serviços técnicos especializados como os de perícia, a Administração pode, sim, restringir o número de credenciados e utilizar critérios de pontuação — baseados em experiência e qualificação — para classificar e selecionar os candidatos. Isso parece contraditório porque o credenciamento, como hipótese de inexigibilidade, pressupõe a inviabilidade de competição. A lógica tradicional sugeriria que todos os aptos deveriam ser contratados.
No entanto, o TCU esclareceu que a aplicação da lei não se resume a uma regra isolada. O objetivo é ponderar múltiplos princípios para alcançar o melhor resultado. Neste caso, a seleção dos mais capacitados privilegia um extenso rol de princípios, como os da legalidade, impessoalidade, eficiência, interesse público, igualdade, eficácia, motivação, vinculação ao edital, julgamento objetivo, razoabilidade, competitividade e proporcionalidade. Segundo a decisão, limitar vagas com base em mérito atrai prestadores mais qualificados, elevando a qualidade do serviço.
...a restrição do número de credenciados por meio de critérios objetivos de pontuação que valorizam a experiência e a qualificação “revela-se um mecanismo legítimo para selecionar os profissionais mais capacitados, convergindo para a busca da eficiência e para a efetiva proteção do interesse público”.
Importante notar que esta não é uma decisão isolada. Ela se alinha a uma linha de raciocínio que o Tribunal vem consolidando, a exemplo do Acórdão 533/2022-Plenário, que já havia reconhecido a legitimidade de restringir vagas no credenciamento de escritórios de advocacia, destacando os benefícios à eficiência administrativa.
Lição 2: O "Permanente" que Tem Prazo para Acabar
"Cadastramento permanente" não significa que as inscrições ficam abertas para sempre.
Outro ponto de controvérsia analisado foi a expressão "cadastramento permanente", prevista no art. 79 da Lei 14.133/2021. A interpretação literal poderia levar à conclusão de que um edital de credenciamento nunca poderia ser fechado para novas inscrições.
O TCU, alinhado à visão do MPTCU, esclareceu que a "permanência" se refere à garantia de que, durante o prazo de inscrição fixado no edital, não pode haver qualquer barreira ao acesso de interessados. Ou seja, a Administração deve definir um período razoável para as inscrições e, nesse intervalo, manter o processo aberto a todos. Essa interpretação, aliás, está em harmonia com a regulamentação do Poder Executivo, o Decreto 11.878/2024, que também vincula a permanência do edital à sua vigência.
A decisão reforça que não é "obrigatório, nem lógico, que o edital de chamamento fique indefinidamente aberto". O que seria ilegal, segundo o Tribunal, é encerrar as inscrições antes do prazo estipulado no edital, mesmo que o número de vagas já tenha sido preenchido, pois isso cercearia o direito dos interessados. No caso concreto analisado, essa irregularidade não ocorreu.
Lição 3: Dinheiro Privado, Mas a Regra é Pública
A origem do pagamento não descaracteriza a contratação pública.
No caso analisado, que envolvia a Alfândega da Receita Federal do Brasil no Porto de Paranaguá/PR, a RFB argumentou que seu processo de credenciamento de peritos não estaria sujeito à Lei de Licitações. A tese se baseava no fato de que a remuneração dos profissionais não provinha de recursos públicos, mas era custeada diretamente pelos importadores e exportadores.
O TCU refutou categoricamente essa tese. O Tribunal explicou que o fator determinante é a relação jurídica firmada entre a Administração Pública (a RFB) e o profissional credenciado. O serviço de perícia é, na essência, uma "assistência técnica" prestada à autoridade aduaneira, "que o solicita, define seus quesitos, gerencia sua execução por meio de rodízio e utiliza seus resultados para a formação de sua convicção em processos administrativos". O fato de o ônus financeiro ser transferido a um terceiro não anula a natureza pública da contratação.
A decisão também reforçou o princípio da hierarquia das normas, deixando claro que uma instrução normativa interna não pode se sobrepor à lei federal que rege as licitações e contratos em todo o país.
“A competência para estabelecer normas gerais de licitação e contratação é privativa da União, conforme o art. 22, XXVII, da Constituição Federal, e foi materializada na Lei 14.133/2021. A Instrução Normativa RFB 2.086/2022, por ser um ato administrativo de natureza infralegal, está subordinada à lei e não pode inovar no ordenamento jurídico para criar um regime de contratação excepcional não previsto pelo legislador”.
Conclusão: Eficiência como Norte
A mensagem principal desta decisão do TCU é clara: a aplicação das leis de contratação pública evoluiu de um exercício mecânico para uma análise mais sofisticada. Como destacou o relator, a correta interpretação se dá pela "ponderação entre os princípios [...] e não pela aplicação isolada de uma única regra". As três lições aqui discutidas convergem para um mesmo ponto: a eficiência e a busca pelo resultado mais vantajoso para a Administração ganham um destaque fundamental, permitindo que a busca pela máxima qualidade se harmonize com o instituto do credenciamento.
Fonte: Acórdão 2192/2025 Plenário, Representação, Relator Ministro Antonio Anastasia.
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